Kizomba, a festa da raça
Autores: Rodolpho, Jonas, Luiz Carlos da Vila
Valeu Zumbi!
O grito forte dos Palmares
Que correu terras, céus e mares
Influenciando a abolição
Zumbi valeu!
Hoje a Vila é Kizomba
É batuque, canto e dança
Jongo e maracatu
Vem menininha pra dançar o caxambu (bis)
Ôô, ôô, Nega Mina
Anastácia não se deixou escravizar (bis)
Ôô, ôô Clementina
O pagode é o partido popular
O sacerdote ergue a taça
Convocando toda a massa
Neste evento que congraça
Gente de todas as raças
Numa mesma emoção
Esta Kizomba é nossa Constituição (bis)
Que magia
Reza, ajeum e orixás
Tem a força da cultura
Tem a arte e a bravura
E um bom jogo de cintura
Faz valer seus ideais
E a beleza pura dos seus rituais
Vem a Lua de Luanda
Para iluminar a rua (bis)
Nossa sede é nossa sede
De que o "apartheid" se destrua
Valeu!
Análise: Kizomba, a Festa da raça*
A letra deste samba-enredo da Vila Isabel nos traz a representação de um negro que resistiu à escravidão; mais do que isso, um negro que não deixou de lutar contra o preconceito racial, que não perdeu a esperança por liberdade e igualdade. Essa representação se dá através de uma formação discursiva que nos traz enunciados que remetem a heróis e personagens marcantes da cultura negra do Brasil, como Zumbi dos Palmares, a escrava Anastácia e a sambista Clementina de Jesus. Há também a representação de elementos que compõe a cultura religiosa e festiva do negro: a kizomba, jongo, maracatu, caxambu, pagode, ajeum e orixás.
Há outras razões discursivas que devem ser levadas em conta no enredo da Vila Isabel. Em primeiro lugar, as razões históricas, pois em 1988 se comemorava os 100 anos da abolição da escravatura do país e marcava também a implementação da nova Constituição brasileira. A compreensão desses dados é uma chave para a análise deste samba-enredo. Kizomba funcionará como um signo linguístico que nos remete a uma festa de resistência cultural de um povo e que irá articular dois sujeitos: o histórico e o ideológico (negro como escravo, como subcidadão depois de liberto; o imaginário coletivo do negro e sobre o negro). Histórico porque faz referência a um estilo musical, a uma dança e festa que passaram a ser assim designadas na década de 80, em Angola, por grupos pertencentes às Forças Armadas pela Libertação de Angola. Vale lembrar que durante a formação do MPLA na década de 70 , um grupo de artistas brasileiros (entre eles Martinho da Vila e Chico Buarque) viajou à Angola e isso pode ter influência sobre o imaginário de "Kizomba". E ideológico porque engloba toda a congregação de povos que resistiram à opressão, a toda festa de um povo que resistiu bravamente à escravidão. A Kizomba de Vila Isabel configura-se no espetáculo do Carnaval carioca. O Carnaval é uma festa popular que atinge todo o povo, assim, a kizomba que a Vila diz ser "nossa Constituição" pressupõe a confraternização de todas as culturas, um símbolo pelo direito a igualdade de todas as raças.
Outra marca entre História e ideologia está na referência ao Apartheid. No trecho que diz "Nossa sede é nossa sede/De que o "apartheid" se destrua", a formação discursiva não nos remete apenas ao regime imposto na África do Sul desde 1948, que separava negros e brancos e que desqualificava o negro como cidadão, mas também nos remete à um apartheid simbólico que ainda separa o negro do branco. A construção desse discurso nos mostra que mesmo celebrando os 100 anos do fim da escravidão, mesmo que haja uma festa que congrace todas as raças, há ainda uma diferença de direitos, há ainda um preconceito implícito em todas as sociedades e que ainda precisa ser vencido.
"Kizomba, a Festa da raça" não é um samba ressentido, nem de protesto, mas um samba que apesar de celebrar tem uma pontuação crítica. Pode-se supor que o processo discursivo não tem um fim, está no domínio da antecipação. Na análise do discurso, o domínio da antecipação é o que dá abertura às relações discursivas, relacionando o domínio da memória com o da atualidade. Isso porque há interação entre o negro do passado com o negro para quem se canta, porque há uma ponte entre o negro herói, valente, mártir com o negro que, mesmo liberto, ainda tem que lutar por seus direitos, um negro que mesmo festejando ainda tem que destruir as separações raciais e sociais. Há a interação do negro narrado pelo discurso da História como o negro da realidade atual que ainda tem que construir uma nova História do seu povo. A kizomba da Vila Isabel construiu seu discurso na celebração de um negro que lutou e sofreu sozinho pela liberdade com a celebração de uma festa popular que pode alertar para que todas as culturas unam-se em busca do fim das diferenças.
* Por Natália Chagas, Letras/USP, 2009.
Hoje, 13 de Maio, não é uma data celebrada pelos negros... Os 122 anos do fim da escravidão não é mais muito falado, as discussões pertinentes à segregação racial passaram para dia 20 de Novembro. 20 de Novembro marca a data da morte de Zumbi dos Palmares, é o Dia da Consciência Negra.
Realmente, não há muito o que se comemorar em 13 de Maio... Mas não deixa de ser uma data para a reflexão... 122 anos do fim da escravidão, será? As diferenças sociais, as separações que o regime da escravidão causou no Brasil continuam gritando nos nossos porões...
122 depois, o Brasil ainda arrasta os seus grilhões... O mundo também arrasta, e continuará arrastando até perceber que a raça é uma só: Humana.
Natália Chagas F. S. Máximo
(descendente de alemães, portugueses, negros e muitas outras etnias, porque como dizia Cazuza "o meu sangue é negro, branco, amarelo e vermelho")