3 de março de 2011

O Carnaval, o samba e os desfiles - Homenagem aos sambistas e as escolas de samba

   Abram alas, o Carnaval chegou! Durante o período carnavalesco o Brasil será conduzido por uma orquestra de instrumentos de percussão: que venham os tamborins, os repiques, os tantãs, os surdos, os agogôs, as cuícas, os reco-recos, os chocalhos, pandeiros e tudo mais que gere um bom batuque e nos brinde com o melhor do samba e do samba-enredo. 
    Sim, no Brasil, Carnaval é o tempo sagrado para se ouvir um bom partido-alto, um samba de terreiro, samba-choro, um samba-canção, um samba-exaltação, um samba-de-breque,  um samba-enredo. O samba vem da Bahia, vem do morro carioca, vem da garoa paulistana, vem do fundo de um quintal... mas não podemos esquecer que sua raíz vem lá da África! Sim, o nosso Carnaval é o tempo de relembrarmos nossas raízes africanas e resgatar um pouco da nossa História. 
    As escolas de samba muitas vezes cumprem (ou pelo menos tentam) essa missão através de seus desfiles. O samba-enredo é um conjunto de letra e melodia que resumem um tema, ou seja, o enredo escolhido por uma escola de samba. As escolas de samba estão ligadas a história do carnaval carioca: em 1928, no berço do samba, nascia o bloco Deixa Falar (entre seus fundadores estava o grande Ismael Silva) que seria o esqueleto da nossa 1ª escola de samba: Estácio de Sá. Assim, novos blocos/escolas foram surgindo e disputando o carnaval com seus sambas-enredo. Foi na década de 1930 que esses concursos foram oficializados e que as escolas passaram a exaltar personagens e fatos históricos. Obviamente, a veracidade histórica dos enredos carnavalescos pode e deve ser contestada, pois baseiam-se em olhares folclorizados. Os enredos históricos começaram a ser cantados pela perspectiva do colonizador e depois dos colonizados (opressor versus oprimido): de um lado a camuflagem dos fatos da terra daqui, de outro lado o imaginário sobre a terra de lá - um festival de verdades míticas, um festival de mentiras históricas - mas, sempre rendiam uma boa letra de samba-enredo.  Hoje os sambas-enredo continuam com sua veracidade constestada, pois somarem-se os olhares dos coreográfos e cenógrafos que querem produzir um espetáculo apoteótico - os desfiles se renderam ao show-business - o Carnaval virou o maior evento da nossa cultura popular e da indústria cultural. É preciso ressaltar que os enredos são livres e não são só sobre a África, ou temas da História. Verdades ou mentiras, popular ou industrial o fato é que os desfiles do passado e os desfiles de hoje despertam grande fascínio.
    Estudos acadêmicos à parte, é necessário dizer que certas escolas de samba, toda vez que pisam na avenida provocam em muitas pessoas uma emoção inexplicável. Aliás, um bom samba é uma emoção inexplicável! É por causa do samba e das escolas de samba que gosto tanto do Carnaval.
   É emociante ver o azul e branco portelense tingindo a avenida, nesse momento mágico (dentro do coração de quem gosta de samba) sabemos que é a deusa do samba que está desfilando. O azul e branco também podem ser da escola lá da Vila, aquela que não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também. Pode ser também da magestosa e soberana, de fato, nilopolitana Beija-Flor. Quando as cores passam a ser o verde e rosa, temos a ciência que veremos a beleza de um cenário que a natureza criou - sim, é a Mangueira que chegou. E o vermelho e branco? Ah, pode ser a academia de samba que me faz feliz, salve Salgueiro! Pode ser também, o lugar onde podem matar-nos de amor... a escola de samba do largo do Estácio. Tantas cores, tantas histórias, tantos enredos, tantas melodias, tantas baterias - salve Tradição, Mocidade Independente de Padre Miguel, Viradouro, Unidos da Tijuca, Porto da Pedra, Caprichosos de Pilares e tantas outras...
   Ah, e nos desfiles não podem faltar a vozes potentes dos intérpretes de samba-enredo (puxador NÃO, como diria o grande Jamelão), o som do cavaquinho, as saias rodopiantes da ala das baianas, a encenação da comissão de frente e a elegância de um mestre-sala e sua porta-bandeira.
  Tirando os desfiles de carnaval e os sambas-enredo... Como é bom ouvir um bom samba e suas variantes. Sim, o carnaval é o tempo de lembrar que o samba vem do coração, que funciona como oração! 
  É Carnaval: Salve Ismael, Sinhô, Adoriran, Cartola, Noel, Candeia, Anicetos ( da Portela e do Império), Argemiro, Ataulfo, Casquinha, Dona Ivone, Dona Zica, Heitor dos Prazeres, João Nogueira, Jackson do Pandeiro, Jair do Cavaquinho, Jamelão, Jovelina Pérola Negra, Luiz Carlos da Vila, Manaceia, Monarco, Moreira da Silva, Bezerra da Silva, Martinho da Vila, Mestre Marçal, Nei Lopes, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Nelson Rufino, Paulo da Portela, Paulinho da Viola, Ratinho, Riachão, Silas de Oliveira, Tobias da Vai-Vai, Tia Eulália, Tia Doca da Portela, Tia Surica, Tinga, Walter Alfaiate, Zeca Pagodinho, Sombrinha, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Noite Ilustrada, Elizeth Cardoso, Noca da Portela, Dorival Caymmi, Clara Nunes, Beth Carvalho, Alcione, Teresa Cristina, Quinteto e Branco e Preto, Diogo Nogueira, Roberta Sá, Chico Buarque, Vinicius e Tom. Salve as velhas guardas: da Portela, da Mangueira, do Império... Salve Osvaldo Cruz e Madureira e todos os poetas da Praça Onze!
 Salve a todos que trazem o samba na alma e bom Carnaval!!!

2 de março de 2011

Mamonas Assassinas - 15 anos de saudade







    Utopia... Entre algumas definições desse verbete no Houaiss está: "projeto de natureza irrealizável; ideia generosa, porém impraticável; quimera, fantasia". Para muitas pessoas esse projeto irrealizável está em montar um banda (possivelmente de rock) e fazer sucesso.  
    Utopia foi o primeiro nome de uma banda formada por cinco garotos de Guarulhos, garotos que se apresentavam na periferia de São Paulo fazendo covers de bandas de rock. Entretanto, o tom sério do nome e os covers de "bandas sérias" não combinavam com o espírito brincalhão dos cinco integrantes, eles eram melhores fazendo performances engraçadas e paródias musicais. Utopia cedeu ao escracho, o irrealizável ia cedendo ao realizável e assim, nascia uma banda chamada Mamonas Assassinas.
    Em Julho de 1995, o Brasil passava a conhecer e a gostar de Bento, Dinho, Júlio, Samuel e Sérgio. Em pouco tempo as crianças, os jovens e os adultos passavam a cantar: "Roda, roda  vira, solta a roda e vem/Me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém", "Mina, seus cabelos é da hora...", "Quanta gente, quanta alegria, a minha felicidade é um crediário nas casas Bahia", "Comer tatu é bom/Que pena que dá dor nas costas", "Um tanto quanto másculo, com M maiúsculo, vejam só os meus músculos que com amor cultivei...", e muito mais...
    De julho de 1995 a março de 1996 o Brasil viveu a "mamonasmania". Foram 7 meses de contagiante alegria, os maiores contagiados? As crianças (e eu era uma delas)! Os Mamonas Assassinas misturavam em suas canções: rock, pagode, forró e até música tradicional portuguesa (o vira). Apresentavam-se fantasiados: coelhinhos, batman e robin, irmãos metralhas... enfim, roupas coloridas, perucas, chapelões grandes e engraçados e além disso, sempre havia uma coreografia. Esse jeito irreverente cativava as crianças, todas queriam imitá-los e as canções eram fáceis de decorar.
    Através das canções dos Mamonas, as crianças podiam cantar os palavrões que aprendiam e diziam baixinho (longe dos ouvidos de seus pais), os pais não davam bronca, não levavam a "malcriação" a sério, era brincaderinha... As crianças estavam livres para fantasiar, brincar sem censura, desenvolver uma malícia inocente, não tinha maldade, era só diversão: um pouco de malícia não faz mal a ninguém... Os pais não podiam dimensionar o quanto seus filhos afeiçoavam-se há esse bando de garotos fanfarrões.
    Na noite de 02 de março de 1996, o jatinho com os cinco rapazes de Guarulhos, dois assistentes da banda, piloto e co-piloto chocou-se na Serra da Cantareira. A notícia da morte prematura dos Mamonas chocaria o país no dia seguinte. Muitas pessoas não quiseram acreditar, esperavam ser uma brincadeira de mal gosto... Infelizmente, não era mentira: os Mamonas Assassinas passaram por aqui tão rápidos como um cometa.
    Muitas crianças aprenderam ali o significado da palavra morte, tiveram o primeiro contato com a sensação de dor e perda de pessoas queridas, afinal, eram eles uma espécie de irmão/primos mais velhos que nos ensinavam a fazer traquinagens. Muitos pais tiveram que ensinar seus filhos a lidar com o sentimento de tristeza, tiveram que encontrar uma maneira de explicar que seus ídolos não faziam mais parte desse plano. O Brasil parava para chorar a morte de jovens tão cheios de vida. É sempre assim, a morte de ídolos no auge da carreira, com tão pouca idade é capaz de comover um país inteiro. Os pais dessa geração perceberam então, que Mamonas Assassinas foi a brincadeira mais séria que tivemos contato.
     Com os Mamonas aprendemos que crianças não são tão inocentes assim, que de vez em quando falar um ou dois palavrões não é pecado, que debochar na dose certa não é maldade, que podemos rir do que nos parece um pouco nojento ou ridículo, que cantar umas besterinhas de vez em quando é bom para espalhar o riso, que cometer um errinho de português de vez em quando pode ser divertido, que não devemos levar os problemas tão a sério, que diversão é fundamental, que ter um pouco de malícia (sem maldade, sem exagero) não faz mal a ninguém, que é gostoso espalhar alegria e que dançar, cantar e falar bobagens com os amigos é mais do que fundamental!
    Faz 15 anos que Dinho e companhia nos deixaram para ir alegrar outro lugar, talvez tenham ido brincar nos "campos do Senhor"... vai saber? Cada um acredita naquilo que lhe conforta. Nenhuma banda será como eles foram, tão meteórica - 15 anos depois, nossa geração, deve ainda colher o legado que nos deixaram: irreverência e alegria sempre! Salve Mamonas Assassinas...



                                                                                                                  Natália Chagas


25 de janeiro de 2011

Salve Maestro Soberano


      À 25 de Janeiro de 1927 nascia o carioca que maestrou a música de nosso país: Antônio Carlos Jobim, nosso Tom Jobim, nosso maestro soberano, o tom de nossa música.
      Tom tentou ser arquiteto, mas não terminou a faculdade... as teclas do piano, a boêmia, as partituras, as regências, a poesia embutida nas letras das canções, as mulheres (musas inspiradoras de suas composições), enfim... a Música lhe chamava, precisava ele cumprir seu destino para a maestria.
      Em 1958, o Brasil conhecia a canção Chega de Saudade, composição de Tom e Vinicius de Moraes lançada no 1º compacto de João Gilberto: nascia então a Bossa Nova! Que belas parcerias Tom fez em sua estrada: o poetinha Vinicius, o "desafinado" João Gilberto, Chico Buarque, Edu Lobo, Elis Regina... tantos outros compositores, letristas, musicistas, poetas, cantores e cantoras que aqui não cabem, mas que compartilhavam um pouco de sua genialidade. Tom gravou até com The Voice (Frank Sinatra) a versão em inglês de sua celebre Garota de Ipanema.
      Se estivesse vivo, Tom completaria 84 anos! Só temos que agradecer pelo seu 84º aniversário, afinal, nosso maestro nos mostrou muita coisa boa: foi ele que nos fez deleitar o fino da bossa, a cantar a felicidade, a apreciar as águas de Março, a descobrir que amor só é amor se for em paz, a relembrar os anos dourados, a ouvir um bom bolero, a cantar uma moça bonita, que brigas não devem existir nunca mais, que canções podem ser para eternas despedidas ou para amores demais, a dizer para saudade, chega!, a ver a beleza de quando se está chovendo na roseira, a querer passear em Copacabana ou no Corcovado, que a primavera pode ser derradeira, que podemos cantar desafinado, que dizer adeus às vezes é preciso, assim como dizer que eu sei que vou te amar, é... falando de amor, é preciso dizer eu te amo!, no fim de um romance, admirar as fotografias, soltar frases perdidas!
      Tom nos mostrou que: o balanço de uma mulher a caminho do mar pode ser eternizado, que podemos ter incerteza ou insensatez e acabar tudo num lamento!, que milagres e palhaços cabem em uma canção, já sabia ele que o morro não tem vez, que amanhã sempre haverá um samba e que na Mangueira tem espaço para um piano, pois é... por causa de alguém podemos pular carniça ou quebrar pedra e depois disso, colecionar sonetos e retratos em branco e preto que maltratam o coração, que ouvir sabiá é muito bom, que há rocknália e samba de uma nota só, há também samba do avião, samba torto, sambinha bossa nova e que samba não é brinquedo não!, que às vezes achamos que só podia ser com você, mas acabamos em solidão, acabamos sentindo tristeza, mas mesmo triste a turma do funil não para! Tom nos contou que há coisas que só o coração pode entender, assim como que para todas as mulheres se faz um canção...


Salve maestro! Como seria bom se todos fossem iguais a você...


20 de novembro de 2010

Apresentação no SIICUSP 2010, post em homenagem ao Dia da Consciência Negra






Minha pesquisa de Iniciação Científica na USP se intitula Literatura e Cultura popular: A representação de África nas letras de samba-enredo, e foi feita com orientação do Prof. Dr. Émerson da Cruz Inácio. A ideia para esta pesquisa surgiu através do contato com o samba-enredo Áfricas: do berço real à corte brasiliana apresentado no carnaval de 2007 pela escola de samba Beija Flor de Nilópolis. Esse enredo provocou debates na mídia e entre intelectuais sobre a forma como a África é representada nas letras de samba-enredo. Decifrar verdades e mentiras, mitos e história real tornaram-se uma necessidade, ainda mais levando-se em conta a lei 10.639 que determina o ensino de História e Culturas de base africana nos ensino fundamental e médio. A lei e o fascínio pela temática me mostraram o quão necessário era refletir sobre a influência da cultura africana sobre a cultura brasileira.

O primeiro passo para dar andamento a esta pesquisa foi encontrar sambas-enredo que tivessem a África e o negro como tema. Depois de enumerados esses enredos, definir um corpus a ser analisado e definir um eixo metodológico que fundamentasse essas análises. O corpus definido reúne letras de samba do carnaval carioca entre os anos de 1998 e 2008, onde foram analisadas oito letras de samba enredo. A análise foi fundamentada na análise do discurso francesa e na teoria baktiniana. Antes de dar inicio à análise dessas letras de samba enredo, foi necessário uma análise anterior. Uma análise de um samba-enredo que fosse emblemático acerca da representação de uma identidade africana no nosso carnaval e de onde pudéssemos basear a análise das letras do corpus selecionado. O samba-enredo utilizado para este fim foi Kizomba, a festa da raça com o qual a Vila Isabel ganhou o carnaval de 1988. Este enredo foi uma chave para as análises, pois foi um enredo que marcou os 100 anos da abolição do regime escravocrata no Brasil.

"Kizomba, a festa da raça - Rodolpho, Jonas, Luiz Carlos da Vila



Valeu Zumbi!

O grito forte dos Palmares

Que correu terras, céus e mares

Influenciando a abolição



Zumbi valeu!

Hoje a Vila é Kizomba

É batuque, canto e dança

Jongo e maracatu



Vem menininha pra dançar o caxambu (bis)



Ôô, ôô, Nega Mina

Anastácia não se deixou escravizar (bis)

Ôô, ôô Clementina

O pagode é o partido popular



O sacerdote ergue a taça

Convocando toda a massa

Neste evento que congraça

Gente de todas as raças

Numa mesma emoção



Esta Kizomba é nossa Constituição (bis)



Que magia

Reza, ajeum e orixás

Tem a força da cultura

Tem a arte e a bravura

E um bom jogo de cintura

Faz valer seus ideais

E a beleza pura dos seus rituais



Vem a Lua de Luanda

Para iluminar a rua (bis)

Nossa sede é nossa sede

De que o "apartheid" se destrua



Valeu!"

A letra deste samba-enredo da Vila Isabel nos traz a representação de um negro que resistiu à escravidão; mais do que isso, um negro que não deixou de lutar contra o preconceito racial, que não perdeu a esperança por liberdade e igualdade. Essa representação se dá através de uma formação discursiva que nos traz enunciados que remetem a heróis e personagens marcantes da cultura negra no Brasil, como Zumbi dos Palmares, a escrava Anastácia e a sambista Clementina de Jesus. Há também a representação de elementos que compõe a cultura religiosa e festiva do negro: a kizomba, jongo, maracatu, caxambu, pagode, ajeum e orixás.

Há outras razões discursivas que devem ser levadas em conta no enredo da Vila Isabel. Em primeiro lugar, as razões históricas, pois em 1988 se comemorava os 100 anos da abolição da escravatura do país e marcava também a implementação da nova Constituição brasileira. A compreensão desses dados é uma chave para a análise deste samba-enredo. Kizomba funcionará como um signo lingüístico que nos remete a uma festa de resistência cultural de um povo e que irá articular dois sujeitos, o histórico e o ideológico (Negro como escravo, como subcidadão depois de liberto; o imaginário coletivo do negro e sobre o negro). Histórico porque faz referência um estilo musical, a uma dança e festa que passaram a ser assim designadas na década de 80, em Angola, por grupos pertencentes às Forças Armadas pela Libertação de Angola. E ideológico porque engloba toda a congregação de povos que resistiram à opressão, a toda festa de um povo que resistiu bravamente à escravidão. A Kizomba da Vila Isabel configura-se no espetáculo do Carnaval carioca. O Carnaval é uma festa popular que atinge todo o povo, assim, a kizomba que a Vila diz ser “nossa Constituição” pressupõe a confraternização de todas as culturas, um símbolo pelo direito a igualdade de todas as raças.

Outra marca entre História e ideologia está na referência ao Apartheid. No trecho que diz “Nossa sede é nossa sede/De que o “apartheid” se destrua”, a formação discursiva não nos remete apenas ao regime imposto na África do Sul desde 1948, que separava negros e brancos e que desqualificava o negro como cidadão, mas também nos remete à um apartheid simbólico que ainda separa o negro do branco. A construção desse discurso nos mostra que mesmo celebrando os 100 anos do fim da escravidão, mesmo que haja uma festa que congrace todas as raças, há ainda uma diferença de direitos, há ainda um preconceito implícito em todas as sociedades e que ainda precisa ser vencido.

Kizomba, a Festa da raça não é um samba ressentido, nem de protesto, mas um samba que apesar de celebrar tem uma pontuação crítica. Pode-se supor que o processo discursivo não tem um fim, está no domínio da antecipação. Na análise do discurso, o domínio da antecipação é o que dá abertura às relações discursivas, relacionando o domínio da memória com o da atualidade. Isso porque há interação entre o negro do passado com o negro para quem se canta, porque há uma ponte entre o negro herói, valente, mártir com o negro que, mesmo liberto, ainda tem que lutar por seus direitos, um negro que mesmo festejando ainda tem que destruir as separações raciais. Há a interação do negro narrado pelo discurso da História com o negro da realidade atual que ainda tem que construir uma nova História do seu povo. A kizomba da Vila Isabel construiu seu discurso na celebração de um negro que lutou e sofreu sozinho pela liberdade com a celebração de uma festa popular que pode alertar para que todas as culturas unam-se em busca do fim das diferenças.

Após essa primeira análise, as outras letras foram analisadas separadamente e em cada uma delas buscou-se encontrar as depreensões que temos da África. Os sambas-enredo analisados foram: “Negra Origem, negro Pelé, negra Bené” (Caprichosos de Pilares); “Dom Obá II – Rei dos esfarrapados”, “Príncipe do povo” (Estação Primeira de Mangueira); “Liberdade! Sou negro, sou raça, sou Tradição” (Tradição); “Zumbi, rei de Palmares e herói do Brasil – A História que não foi contada” (Caprichosos de Pilares); “Agudás, os que levaram a África no coração e trouxeram no coração da África o Brasil” (Unidos da Tijuca); “Áfricas, Do berço real à Corte brasiliana” (Beija-Flor de Nilópolis); ‘Preto e Branco a Cores”(Unidos do Porto da Pedra) e “Candaces” (Unidos do Salgueiro). A finalidade dessas análises foi a de descrever a forma como a África é apresentada nessas letras, uma vez que majoritariamente tal visão apresenta um viés mítico e que não condiz com a realidade do continente. As análises feitas com base na análise do discurso francesa, analisou o discurso que “rege” o pensamento que o Brasil tem acerca do continente africano. Através das letras de samba-enredo buscamos elementos pertencentes à cultura e tradição africana e seus referenciais na cultura brasileira: alimentos, religião, tribos/povos, dialetos etc. Muito da história contada por essas letras é fruto do que muitos livros didáticos nos fizeram pensar até hoje sobre África. Muito, também, é pertencente ao imaginário popular dos descendentes africanos que têm em sua mente uma memória de África na qual não viveram verdadeiramente.

Para as análises, não foram usados apenas elementos referentes à análise do discurso, também nos pautamos em teóricos que realizaram estudos sobre cultura popular, história do samba no Brasil e sobre cultura afro-brasileira, tais como: Nei Lopes, Rogério Saturnino, José Ramos Tinhorão, Rodrigo Duarte, Raymond Williams, Alfredo Bosi, Peter Burke, Mikhail Bakhtin e Sérgio Cabral. Todos estes pensadores são importantes à medida que tecem reflexões sobre as culturas populares e suas influências na sociedade e literatura. Alguns deles funcionam como chave para entendermos o real significado dos termos tais como cultura, sociedade, discurso e literatura. Outros nos levam a pensar sobre a importância da formação da história do samba, do seu nascimento musical e na sua dança, pois são frutos da herança que a música e dança africanas deixaram em nosso país.

Ao observar a história do samba temos a confirmação de que o sangue que corre nas veias da cultura do Brasil é sangue genuinamente provindo da África ou, pelo menos afetivamente, tido como tal. Desta forma, deveríamos ter uma preocupação com uma abordagem mais realista da História Africana e não ficarmos nos embasando somente em histórias fantásticas da tradição oral, que muitas vezes podem induzir a um juízo falso sobre as culturas de base africana no Brasil. No caso, devemos pensar na associação entre os saberes populares e os cada vez mais crescentes saberes eruditos que têm sido construídos a respeito do continente negro. No entanto, a partir das análises realizadas, pensamos que talvez o fato de cantarmos apenas a África mítica e sonhada seja produto do espetáculo midiático. O mítico é muito mais interessante aos olhos encantados que acompanham o carnaval que necessariamente a história real.

Analisar as letras de samba-enredo não é uma tarefa fácil, pois primeiro temos que desautomatizar os olhares fantasiosos sobre o continente africano. Temos que partir do ponto de que a África cantada nos enredos carnavalescos é real apenas no tempo de duração dos desfiles, ou seja, neste período a ficção vira realidade na encenação que no desfile se realiza. Essa visão liberta torna-se difícil se pensarmos que até hoje o que nos é ensinado sobre África não é aprofundado e nem suficiente, já que em momento anterior a PEP 10.639, a África surgia apenas para nos mostrar de onde vinham os escravos trazidos ao continente americano e de onde as potências europeias tiravam tantas riquezas.

Outra dificuldade é que ainda há muito preconceito quando se trata de África e de cultura popular. Por outro lado, os estudos e análises sobre carnaval, samba e África despertam comentários muito “apaixonados” e instigantes. Quanto mais se estuda e descobre, mais surge à vontade de descobrir coisas novas e acrescentar novas pontuações à pesquisa. De um lado há quem diga que a História e as letras de samba-enredo mentem sobre a África; por outro, há quem diga que a própria tradição e imaginário africanos mentem sobre o continente negro. Verdades ou mentiras, a realidade é que essas questões hão de sempre despertar fascínio em quem as encara como objeto de análise e pesquisa.

As conclusões tiradas foram as de que podemos inferir que o samba foi se tornando uma espécie de sonho de liberdade para os negros daqui, que desconheciam a realidade africana passada e presente. Contar um pouco da história do samba no Brasil, das suas origens aos dias de hoje e assim discutir a nossa visão de África através do samba, contrastando-a com as imagens que comumente são representadas no material literário, se faz cada vez mais necessário, já que esses estudos permitem colocar lado a lado a África imaginária e a África real.

30 de outubro de 2010

Vetar Monteiro Lobato? Não!



    Em parecer do Conselho Nacional de Educação divulgado nesta semana, chegou-nos a informação de que o livro "Caçadas de Pedrinho" escrito em 1933 por Monteiro Lobato pode ser vetado nas escolas públicas. Depois de tantos anos querem censurar os escritos de Lobato! A alegação para o veto é de que a obra contém termos racistas... Será que se Lobato estivesse vivo iriam tentar prendê-lo por racismo?!
     Cresci lendo Monteiro Lobato, graças a Deus, a minha infância foi recheada pela leitura dos personagens que compunham o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Não me tornei racista e nem desenvolvi preconceitos. A obra infantil de Monteiro Lobato contribuiu para o desenvolvimento de minha imaginação, despertou curiosidades e sede de conhecimento. Foi à partir das histórias contadas através de Dona Benta e comentários do Visconde de Sabugosa que ganhei gosto pela Literatura e História (esse gosto também foi impulsionado por minha mãe e meu pai que sempre me encheram de cultura). Os "causos" contados por Tio Barnabé e as crendices de Tia Nastácia me deram gosto pela Cultura Popular. Os escritos de Lobato me impulsionaram à ler os contos de fada, Robson Crusoé, os livros de Julio Verne e muito mais. Lobato me fez gostar tanto de Folclore quanto de Mitologia greco-romana: sabia sobre Saci, Cuca, Iara, Curupira, Mula Sem-Cabeça e também sabia sobre Belerofonte, Pégaso, Quimera, Teseu, Ariadne e Minotauro. Além do conhecimento passado por meus pais, fui boa aluna, porque li Lobato, e muito.
    Esse veto é uma difamação da obra de Monteiro Lobato (se querem vetar "Caçadas de Pedrinho", também teriam que vetar outros títulos do autor) e desconsidera o tempo em que a obra foi escrita. Os termos usados por Lobato eram comuns, populares e não eram estigmatizados como termos preconceituosos. Quando ao descrever Tia Nástacia usava o termo "preta" não era com o propósito de discriminar a sua cor. Dúvido que alguma criança que tenha lido a sua obra e se deparado com esses termos tenha pensado "puxa, que texto racista", pois a obra deste autor está muito acima de terminologias. A capacidade imaginativa, a fantasia é que nos chamam a atenção. É a relação de carinho, verdade e magia que existe entre Dona Benta, Narizinho, Pedrinho, Emília, Tia Nastácia e Visconde de Sabugosa que é absorvida pelos leitores. Lobato é o maior escritor de nossa Literatura Infantil, pois como poucos soube usar a Literatura para entreter e ensinar, com Lobato se aprende ao mesmo tempo em que é permitido sonhar, imaginar. Naquele tempo o politicamente correto não ditava a Literatura Infantil e Juvenil.
    O Conselho de Educação deve se preocupar com questões de racismo e combater todos os tipos de preconceito, sim! Mas com certeza não é vetando uma obra de Monteiro Lobato que o farão... Aliás, Lobato faz muita falta na formação das crianças de hoje, acho que nas escolas públicas e particulares deveria haver mais Lobato e menos enrolação!

18 de outubro de 2010

Poesia da negritude moçambicana: antecedentes e desdobramentos






   A poesia moçambicana é caracterizada pela busca da construção de uma identidade nacional, não há uma identidade moçambicana preexistente, mas sim construída. Os poetas moçambicanos têm a plena consciência dessa construção que é formada pelos processos históricos, assim, a construção da identidade da negritude moçambicana é dada pelas experiências políticas e culturais pelas quais Moçambique passou.

   Antes de qualquer coisa, devemos refletir sobre o termo “negritude”. Esse termo começou a surgir no final da década de 30, na poesia de Aimé Césaire. Desencadeando um movimento de literário cultural de poetas negros que vivam na França. Em suma, um movimento que buscava resgatar a herança cultural africana, baseado no conceito de pureza étnica. Esse termo por ser polissêmico, acabou gerando diversas interpretações e críticas. Havia apoiadores e os opositores, que alegavam que esse movimento da negritude ao buscar a criação de uma identidade (sobretudo poética) sobre o que é “ser negro, ser africano”, estava ao final criando uma espécie de segregação, julgavam o termo preconceituoso. No entanto, esse movimento iniciado por negros que viviam na França, desencadeou movimentos da negritude em outros países.

   O surgimento do movimento em países de colonização portuguesa coincidiu com o ápice do regime salazarista acarretando em um silenciamento do movimento. Após os movimentos de libertação das nações africanas, a expressão “negritude” ganhou um novo fôlego, novos debates e significações e misturou-se a termos como: africanidade, angolonidade, moçambicanidade, etc. Enfim, nada além do que uma grande busca por encontrar uma forma de expressar a sua própria cultura.

   É nesse cenário, pós-independência que a poesia moçambicana começa a se revelar de forma mais expressiva. A independência de Moçambique e de outras colônias portuguesas em África fez com que surgisse uma necessidade de se criar identidades africanas, essas identidades deveriam mostrar um olhar propriamente africano perante o mundo. E em cada colônia a construção de uma identidade nacional se deu de uma forma diferente.

   Podemos dizer que, em Moçambique, os poetas que iniciaram a chamada segunda fase da literatura moçambicana, começaram a se revelar a partir de 1945. Noémia de Sousa é considerada uma das pioneiras da moderna poesia moçambicana, pelo sentido e nascimento de sua poesia, foi uma das primeiras poetas a protestar contra o sistema colonial. Denunciou as mazelas, as tragédias as quais os negros eram expostos e clamou por liberdade. Noémia evocava a “Mãe-África”, valorizando a cultura africana. Outra figura importante na poesia de Moçambique é o poeta José Craverinha, que possui um lugar central na literatura moçambicana. Se Noémia foi pioneira, Craverinha foi o poeta que realmente começou a dar formas para aquilo que se chamaria de identidade nacional moçambicana, foi o principal formador do discurso moçambicano.

   A poesia de Noémia de Sousa trata muito mais a questão negra/africana geral do que a questão moçambicana. Craverinha parte desse mesmo sentido, no entanto, é a sua poesia que vai se desenvolvendo para questões propriamente de Moçambique. Em sua poesia, José Craverinha, trata de questões sociais: relação empregador/empregado, subalternidade; imagem do colonizador e colonizado. Vale lembrar que o poeta é de origem portuguesa, mas cresceu em Moçambique e quando o país de tornou independente de Portugal ele optou pela cidadania moçambicana. Por isso, a questão da descaracterização portuguesa é outro grande tema de sua poética, em um dos seus poemas, dedicado ao seu pai essa imagem fica muito clara. “Ao meu pai...” se inicia com a figura do homem forte que era seu pai, um português puro, mas à medida que o pai adoece há uma descaracterização da típica figura do português, assim seu pai se “moçambiquiza” ao morrer. Desta forma, o que não se origina como moçambicano, pela memória vai se moçambicano. É uma memória criada, e essa memória inventada também é uma característica da poesia da negritude moçambicana.

   Obviamente, há outros importantes poetas na poesia de Moçambique, mas foram citados apenas dois exemplos para poder ambientar as características centrais dessa poesia. Há forte ligação política no processo de formação da poesia moçambicana que buscava criar sua identidade. As marcas deixadas pelo período em que Moçambique foi colônia portuguesa e a necessidade de se libertar desse período representa uma forte influência na poesia desse país. A poesia moçambicana ganha força na medida em que cresce uma necessidade de expressão, de expressar tudo o que havia sido silenciado pelos anos de opressão. A idéia sobre o que quer dizer “ser moçambicano” é pungente em todos os poetas, sejam eles ligados ou não às novas diretrizes políticas de Moçambique. Parece que a poética moçambicana é recheada de perguntas sobre sua história, formação e passado. Essas dúvidas são dissolvidas com respostas criadas, preenchidas com realidade e fantasia. Há caracterizado na poesia de Moçambique uma atitude “calibanesca”, atitude de apropriação do outro, uma apropriação das técnicas ocidentais para se encontrar uma forma de expressão particular. Talvez, a mais significativa característica da poesia da negritude moçambicana seja a eterna busca. Busca pela criação de sua identidade de “ser moçambicano”, e para eles não importa que essa identidade seja criada, imaginada ou inventada, desde que seja a identidade de Moçambique, desde que seja a sua expressão. Ser negro, ser africano, pelos parâmetros de ser moçambicano é uma incessante construção. A negritude moçambicana em sua poesia mostra que a identidade de um povo sempre estará em processo de formação, apropriada ou inventada, a formação de identidade nunca deixa de ser construída.




Bibliografia:

. LABAN, Michel. Moçambique, encontro com escritores. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 1998. V.1 (Entrevista com Noémia de Sousa).
. MACEDO, Tânia; MÂQUEA, Vera. Moçambique. In Literaturas de Língua Portuguesa: Marcos e Marcas. São Paulo: Arte & Ciência, 2008.
. SILVA, Manoel de Souza e. Do Alheio ao Próprio: A poesia em Moçambique. São Paulo: EDUSP, 2008.

15 de outubro de 2010

A ausência do pai simbólico em Ao Mestre com Carinho



   A questão da paternidade, ou melhor, da representação da figura paterna é muito forte em toda a obra freudiana. Freud discorre sobre as diferentes personagens paternas: o pai real, o pai idealizado e o pai morto, além disso, toda essa questão da representação do pai, segundo Freud, chega até a origem de nosso inconsciente sob a forma de processos psíquicos. Gita Wladimirski Goldenberg faz uso dessas teorias freudianas para discorrer sobre a ausência do pai simbólico em crianças e adolescentes. Goldenberg afirma que as infrações cometidas pelos adolescentes podem provir da ausência da lei paterna dentro de um lar. A partir desse gancho podemos fazer uma análise do filme Ao Mestre com Carinho.

   O filme Ao mestre com carinho, dirigido por James Clavell aborda como tema principal o papel da educação na formação do homem. O cenário para essa discussão é uma escola pública do subúrbio operário londrino na década de 60. O filme nos mostra o relacionamento de um professor negro e seus alunos, além de também falar sobre preconceito, violência, solidariedade, amadurecimento, etc. Sidney Poitier encarna o professor Mark Tackeray, um engenheiro desempregado que acaba por aceitar uma proposta de emprego como professor mesmo nunca tendo lecionado. Sua primeira experiência como professor é em uma classe de adolescentes rebeldes que estão para se formar e dar os primeiros passos na vida fora do âmbito escolar, sendo assim, seu desafio é fazer com que esses jovens tão rebeldes se interessem pela educação. Talvez, seja esse, o primeiro filme a retratar os desafios de um professor com uma típica classe de alunos desinteressados. Como toda “classe problema” há nesta turma do professor os adolescentes que simbolizam e lideram toda essa revolta, esses jovens são os personagens: Denham, Pamela Dare e Barbara Pegg. Denham é o típico aluno desafiador, tem a necessidade de se mostrar mais “homem” que o seu professor e sempre procura provocá-lo ou insultá-lo; Pamela é a garota popular e bonita, uma personificação da “lolita”. É a jovem que procurar ter uma atitude sensual, mas ao mesmo tempo deixa escapar uma certa fragilidade diante do mundo; Barbara Pegg é a garota que mesmo não sendo tão bonita, segue os modelos de ação de Pamela. Tanto nesses três adolescentes como em todo o restante da classe, percebe-se que há problemas com a figura paterna.

   Na realidade, para os adolescentes desse filme a escola era uma espécie de fuga dos problemas enfrentados em casa, desobedecer a figura do professor era uma forma de mostrar a sua revolta e de certa forma atingir a figura do adulto. A escola não aplicava nenhum tipo de castigo aos alunos o que propiciava essa atitude revoltada que tomavam, além disso, alguns professores não ligavam ou não sabiam lidar com os problemas dos alunos, um dos professores diz a Tackeray que “a educação nos dias de hoje é uma desvantagem”. O personagem de Sidney Poitier será o primeiro a perceber que esses jovens precisam de alguém que converse de igual para igual com eles, que lhes dê uma voz, mas que ao mesmo tempo imponha regras para que isso aconteça. E, ao notarem que o professor os trata de modo diferente, esses jovens irão passar a respeitar a sua figura. Um dos claros exemplos dessa mudança da forma de se enxergar o professor é a personagem Pamela Dare.

   Pamela Dare é filha de pais divorciados, seu pai foi embora de casa e ela vive com a mãe. A mãe não consegue exercer a função de representar uma figura de autoridade de respeito, pois ao passar a trazer outros homens para dentro de sua casa faz com que sua filha passe a lhe desrespeitar. Para não ter que ver a mãe namorando um outro, ela passa horas fora de casa sem dar a mínima satisfação à sua mãe. Vemos aí a passagem em que Goldenberg fala da ausência do terceiro na vida da criança/adolescente, a falta da participação ativa do pai acaba por refletir também a insuficiência da função materna. E é aí que o professor Mark Tackeray entra na vida de Pamela, de certa forma é ele quem irá exercer a função de impor as leis paternas. É ele o primeiro homem a tratá-la com respeito e a indicar-lhe como uma “moça decente” deve se portar. A própria mãe da jovem reconhece isso, e recorre ao professor para saber como lidar com sua filha e fazer com que ela haja de modo mais responsável e lhe diga por onde anda. O professor dá para Pamela e seus colegas uma oportunidade de agirem com adultos, ele impõe e mostra as leis de boa educação e comportamento, fala com eles sobre casamento, sexo, emprego, preconceito. Todos esses temas que ele debate com seus alunos nunca haviam sido tratados pelos seus pais, assim, o professor passar a ser a figura do terceiro na formação desses adolescentes. Ao perceber essa postura diferente do professor, Pamela passa a ter um outro comportamento e no lugar da jovem rebelde entra uma jovem preocupada com seu futuro e que demonstra a sua inteligência e coragem. No entanto, o professor desperta mais do que bom comportamento na adolescente, ela também desenvolve uma paixão por ele, assim, a admiração de Pamela pelo seu mestre atinge a estância do pathós. Desta forma, se o professor é para a jovem uma substituição da figura paterna, uma personificação do pai simbólico, é também a figura para qual ela repassa o amor do chamado complexo edipiano. Com a sua sensualidade dissimulada, ela tenta seduzir o professor e transmitir-lhe todo o seu afeto, assim o professor, além de ser uma figura de representação da lei paterna, tem que aprender a lidar com essa situação embaraçosa, mantendo o respeito e a distância necessária num relacionamento entre professor e aluno.

   A mudança de comportamento é vista em todos da classe, a rebeldia domada pela superação da ausência da simbologia paterna dá lugar ao amadurecimento dos adolescentes. Mark Tackeray é a representação do professor que supre a ausência do pai. Outra passagem interessante do filme é quando no inicio da história um dos alunos, Seals (que andava cabisbaixo), é visto pelo professor. O mestre pergunta a ele o motivo de sua tristeza, ao que o mesmo responde que a mãe está doente e culpa o pai pela fase que está passando, Seals demonstra claramente sua fúria em relação à figura do pai. No final do filme a mãe do adolescente morre, e é para os braços do professor que ele corre para poder chorar e desafogar a sua dor. Fica claro, que o professor além de substituir a figura do pai no que diz respeito à imposição de regras aos adolescentes, também supre a ausência do pai no que diz respeito às demonstrações de carinho dos jovens.

   Os adolescentes do filme passaram por um processo de amadurecimento, da repulsa à figura do professor passaram ao agradecimento e respeito. No final do filme, o professor vê a sua missão com essa classe cumprida e tem a oportunidade de voltar a trabalhar como engenheiro, mas após uma cena de comoção ao ser homenageado por sua turma se depara com dois jovens, tão rebeldes quanto a sua classe de inicio. Ele então toma a decisão de continuar lecionando, pois vê que outros jovens que precisam suprir a ausência do pai simbólico para amadurecerem e não caírem na delinqüência. No filme, vemos a ausência do pai simbólico se dissipar na figura do professor, a figura do pai está presente no mestre, com carinho.

 
 
TEXTO BASE:
GOLDENBERG, Gita Wladimirski. Levisky,D.L.(org). O pai simbólico está ausente na criança e no adolescente infratores. In: Adolescência pelos caminhos da violência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.